Jeitinho suicida
Muito antes dos céus se prepararem para a chuva, as tragédias no Rio, São Paulo e outras cidades já estavam em preparação. As tragédias são produto da natureza e dos seres humanos, por suas ações e omissões.Jeitinho suicida - Ricardo Noblat: O Globo
Há um século, libertamos os escravos sem fazer a reforma agrária e sem considerar que isso forçaria as migrações em direção às cidades. Desde os anos 30, iniciamos o salto para a industrialização, aumentando a migração. E submetemos nossos projetos de infraestrutura urbana à vontade e à voracidade de um modelo de desenvolvimento perdulário e concentrador.
A consequência é que as cidades estão pagando pelos erros e omissões do passado. Atraímos migrações e usamos recursos para viabilizar a indústria automobilística, e não para dar segurança aos moradores. Em vez de urbanizar os morros, blindamos os caminhos por onde a água vazaria.
Fazemos nossas cidades sobre o alicerce dos “jeitinhos” e por governos sem visão. Em países ricos e responsáveis, vias são construídas respeitando as águas, com fortes investimentos na sua drenagem e atendendo aos direitos sociais das maiorias - que são respeitadas com os investimentos urbanos necessários. Esses países levam em conta o longo prazo. Nós ficamos presos no imediato, não levamos em conta o futuro.
Resolvemos o problema de cada pedaço de asfalto sem considerar que, um dia, todo o território estará asfaltado; deixamos que a pobreza expulse cada brasileiro do campo, sem perceber que, um dia, as cidades estarão superpovoadas; toleramos construções em ladeiras vulneráveis, sem considerar que um dia as fortes chuvas, sem terem para onde escorrer, arrastarão mulheres e crianças, soterrando-as. O Brasil construiu suas cidades como se as chuvas jamais fossem acontecer com a densidade concentrada que só ocorre com certa raridade - mas que acontece. E para não mudarmos o modelo de desenvolvimento e o imediatismo que norteiam as decisões, vamos dando “jeitinhos”, como se as chuvas nunca viessem em densidades infernais, mas previsíveis no longo prazo; usando políticas públicas que privilegiam apenas a solução de problemas de uma parte pequena e privilegiada da sociedade.A natureza é paciente, mas não tolera “jeitinhos”.
Não podemos jogar a culpa somente nos atuais governantes, nem apenas nos governantes locais, nem mesmo em todos os governantes. A culpa é da nossa cultura da preferência pelo imediato e do pavor à prevenção. A culpa não está só nos céus. A chuva não escolheu o Rio. Foi o Brasil que escolheu o caminho da imprevisão. Fizemos a opção pelo imediatismo, pela concentração, pela industrialização, pela urbanização apressada, com infraestrutura incompleta.A tragédia vem da “chuvomissão”. As chuvas aumentam de volume, os governantes escolhem investimentos que não levam em conta o longo prazo; a omissão fecha os olhos, os ambientalistas não são ouvidos; o resultado é a tragédia.Esse é um problema que nenhum governante vai resolver, se o Brasil continuar com a prática do jeitinho suicida: os baixos salários são compensados com baixa exigência, com aposentadorias precoces, vale-transporte, vale-refeição; a pobreza é compensada com bolsas assistenciais; a falta de habitação, com a tolerância com a ocupação irregular do solo; a falta de estadistas para mudar o futuro do país, com políticos geniais no convencimento de que tudo vai bem.
Certamente que os governadores e prefeitos precisam fazer seus deveres de casa, mas nenhum conseguirá resolver os problemas de sua cidade se o Brasil continuar desprezando o futuro. Comemorando o aumento do número de carros, vias asfaltadas e viadutos construídos, em vez de implantar um novo modelo de desenvolvimento que comemore a moradia, a ocupação regular do solo, o respeito ecológico.
Enquanto isso não for feito, a chuva e a omissão continuarão a provocar tragédias cíclicas, gritantes e visíveis, ao lado de outras, permanentes, mas que nos negamos a ver, na saúde, na pobreza, na educação, na migração por necessidade de sobreviver. Estas, sim, as verdadeiras causas.
Cristovam Buarque é Professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF
Comentários