Nós, os desordeiros.
É comum que, quando estamos falando mal do
Brasil, nos refiramos na terceira pessoa tanto ao país quanto a seu povo.
Dizemos que o brasileiro tem tais ou quais defeitos graves, corno se nós não
fôssemos brasileiros iguais a quaisquer outros. Em relação aos políticos,
agimos quase como se se tratasse de marcianos ou de uma espécie diferente da
nossa, não de gente aqui nascida e criada, da mesma maneira que nós. Somos
observadores e vítimas de fatos com cuja existência não temos nada a ver. Os
corruptos são "eles", os que desrespeitam a lei são
"eles", os que sujam as cidades são "eles", os funcionários
relapsos são "eles" nunca nós.
Paralelamente,
nos comprazemos em cultivar a noção de que o povo brasileiro é basicamente
muito bom, de índole generosa, honesto, solidário, hospitaleiro, pacífico,
cordial, alegre e assim por diante. Artigos, conferências e discursos que
envolvam críticas negativas a alguma característica dos brasileiros contêm
sempre uma ressalva de praxe, a de que o povo não pode ser acusado de nada, o
povo é bom. Com isso, esquecemos que não há povo geneticamente bom ou ruim e
que o comportamento e os valores prevalentes em qualquer sociedade se originam
em elementos culturais, entendidos estes em seu sentido mais lato.
Há quem faça
uso de estatísticas comparativas para mostrar que em áreas como a segurança,
por exemplo, algumas grandes cidades nossas apresentam índices de
criminalidade comparáveis com os de cidades americanas do mesmo porte: Então
não estaríamos tão mal assim. Mas não há corno fazer uma comparação adequada.
O número de infrações e de ocorrências policiais em cidades americanas é muito
maior do que seria aqui, porque lá se recorre à polícia com muito mais, frequência, relativamente. Aqui, tem gente que
não dá queixa nem de carro furtado. Sem falar que as estatísticas geralmente
não mostram assaltos organizados e sanguinários realizados desde São Paulo a
cidadezinhas do interior do Nordeste, onde parece que está surgindo um cangaço
modernizado, com os invasores intimidando a população, explodindo caixas de
bancos, pilhando casas comerciais e invadindo fazendas. E existem ainda as
vastas áreas onde não há polícia, ou a presença do estado é rarefeita e esporádica.
No caso, as estatísticas, porque viciadas na origem, valem bem pouco.
E não
somente a violência e a insegurança são maiores entre nós do que geralmente se
reconhece. Não está na moda falar em padrões morais e quem se arrisca a
mencioná-los é desdenhosamente chamado de moralista. Mas não tem nada de
moralista aquele que lembra que o homem é um ser moral. Sem senso moral, o homem
é um bicho ou um psicopata. Claro, a nação não perdeu suas referências morais,
mas o clima nessa área parece hoje cínico e complacente e não é raro que o
apego a algum valor moral seja qualificado como coisa de otário. Recato e pudor
parecem ter sumido e o exibicionismo, em mil formas contemporâneas, se
manifesta em toda parte. Atos de civilidade, como devolver dinheiro achado,
são manchete nos jornais.
Não há órgão
público que não seja alvo de acusações ou suspeitas de corrupção, nepotismo,
tráfico de influência e outras práticas imorais ou criminosas. O engenho
nacional desenvolveu sistemas eletrônicos avançados e organizou equipes de
"consultores" para fraudar concursos e exames. Dia sim, dia não,
noticiam-se desvios de verbas astronômicos, obras públicas caindo aos pedaços
antes de serem concluídas e toda espécie de falcatrua. Neste instante mesmo,
centenas ou milhares de policiais, pelo país afora, estão embolsando o
"agrado" que lhes dão os motoristas, para evitar uma multa. Também
todos os dias, centenas de milhares de pessoas, ou até milhões, pagam
meia-entrada com carteiras de estudante falsificadas. O "por fora" é
rotineiramente cobrado, em serviços que ou deveriam ser gratuitos ou fáceis de
obter. Vivemos imersos num mar de pequenas delinquências cotidianas que já não
notamos, ou então achamos que fazem parte natural e inevitável da vida.
O desprezo
peia lei e pela moral, a não ser nos raros casos em que a sanção chega com
prontidão e eficácia, é a regra entre nós. E essa situação é piorada pela
existência das conhecidas leis que não pegam, ou ainda, de leis meio
disparatadas, que ninguém acredita que serão observadas com rigor. Por exemplo, hã quem sustente que,
se o sujeito for pego por um fiscal do Ibama, matando um caititu no mato, é
melhor negócio matar o fiscal do que.reconhecer o assassinato do caititu.
Depois de matar o fiscal, o caçador foge
do flagrante, apresenta-se depois à polícia, é réu primário com domicílio
conhecido, responde a processo em liberdade e pega aí seus dois aninhos, talvez
em regime semiaberto. Já a morte do caititu seria crime inafiançável, cana
dura imediata e implacável.
As
estatísticas brasileiras de mortes e ferimentos em acidentes de trânsito são
um escândalo, qualquer que seja o critério usado para avaliá-las. Todo o
trânsito brasileiro é um escândalo, nas cidades e nas estradas. Quem passa
algum tempo fora do Brasil tem que reavivar seus reflexos, para atravessar
ruas. Os motoristas brasileiros se comportam como se o fato de um pedestre
atravessar com o sinal fechado para ele lhes desse o direito de atropelá-lo.
Todos os pedestres passam de vez em quando pela experiência de atravessar a
rua bem antes da passagem de um carro e ver o motorista acelerar na sua
direção, como se mirasse nele. Nas estradas, as manobras arriscadas, como ultrapassagens em pontos
onde há sinalização proibindoas, são rotineiras, assim como o uso do acostamento
como pista e a violação contumaz dos limites de velocidade. E as pesquisas
revelam também que a maior parte dos acidentes é o resultado de imprudência e
má conduta ao volante, desprezo pelas leis e normas técnicas.
Decifrar as
causas desse comportamento equivale de certa forma, a decifrar o Brasil, tarefa
jamais completada por ninguém. As causas são múltiplas, controvertidas e
complicadas, o que torna muito difícil até mesmo identificá-las corretamente.
Por esta razão, assim como fazem os médicos, quando não conseguem um
diagnóstico preciso ou não conhecem com exatidão a causa de uma doença, o
tratamento sintomático é o único caminho. Não sabemos bem por que somos
desordeiros, mas sabemos que somos. E estamos condenados a continuar sendo,
enquanto não levarmos sério o desrespeito à lei e mantivermos uma relação
afetiva com a malandragem, a esperteza marota e a frouxidão de princípios.
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