A BANALIZAÇÃO DO MAL
Tony Bellotto
I. Em 1961 a filósofa alemã naturalizada americana Hannah Arendt acompanhou - enviada pela revista "The New Yorker" - o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel, acusado de genocídio e crimes contra a Humanidade durante a guerra. Dois anos depois ela lançou um livro baseado em suas observações, "Eichmann em Jerusalém: em que surge a expressão banalidade :- ou banalização - do mal. Segundo Arendt, o mal, quando atinge grupos sociais, é político e ocorre onde encontra espaço institucional.
A banalidade do mal se instala no vácuo do pensamento, trivializando
a violência. "Passa o suco, por favor."
2. Arendt concluiu. que Alfred Eichmann não era um sujeito
especialmente antissemita nem
particularmente perverso. Era só um odioso
burocrata cumprindo ordens
sem questioná-las. As conclusões da filósofa causam até hoje muita polêmica.
Eichmann foi enforcado em 1962 em TelAviv.
"E o mel."
Descasco uma banana.
"E o mel."
Descasco uma banana.
3. A banalização do mal, como o samba e outras bossas,
também é coisa nossa. Comentamos com ar distraído sobre corno estamos todos
"anestesiados" pela violência e de como perdemos a capacidade de nos
chocar e nos surpreender por ela. Das atrocidades cometidas durante a ditadura
militar por grupos de repressão até as crueldades praticadas atualmente por bandidos,
policiais despreparados e milícias diversas - passando pela aspereza do
trânsito e pela perene brutalidade generalizada (não esqueçamos que fomos o
último país do continente a abolir a escravidão) -, convivemos rotineiramente
com a violência como se ela fosse uma espécie de...
“Banana!” grito de repente, abalando a tranquilidade domestica do café da manhã.
“Banana!” grito de repente, abalando a tranquilidade domestica do café da manhã.
4. Notícias de Cláudia. Silva Ferreira, a mulher que, depois
de baleada num tiroteio entre polícia e bandidos, foi arrastada por um carro
da polícia numa ação que tinha a finalidade de socorrê-la: "Mataram minha
mãe como um cachorro”, declarou sua filha.
5. "Que absurdo! A morte da Cláudia é um divisor de
águas!” vocifero. "A polícia tinha o dever de ajuda-Ia e acabou
proporcionando ao mundo um espetáculo grotesco de descaso e insensibilidade!
Não se pode aceitar uma coisa assim! Precisamos fazer algo a respeito!”
E começo a amassar a banana, sob olhares intrigados da família.
E começo a amassar a banana, sob olhares intrigados da família.
6. Hoje estou chocado com a morte de Cláudia Silva Ferreira.
Estarei chocado amanhã? Por quanto tempo ainda me lembrarei da cena aterradora
da mulher sendo arrastada pela rua? Ou da morte do cinegrafista Santiago Andrade,
atingido por um rojão numa manifestação? E do Amarildo? Encontraram o corpo,
afinal de contas? Não sei, não se fala mais no Amarildo. E das pessoas - de
quem não lembro os nomes - que foram mortas pela ação irresponsável do motorista
de caminhão que derrubou a passarela, quem se lembra? E do menino acorrentado
ao poste? Como era mesmo o nome dele? Do sujeito justiçado à luz do dia numa
rua movimentada de Belford Roxo? Da turista estuprada na van?
“E esses são apenas alguns dos acontecimentos recentes.”
“E esses são apenas alguns dos acontecimentos recentes.”
7. Não lembro os nomes das vítimas.
Também não lembro os nomes dos vereadores e deputados em quem votei na última eleição. Algum problema de memória relacionado à meia-idade, talvez?
"Amor, a aveia."
Também não lembro os nomes dos vereadores e deputados em quem votei na última eleição. Algum problema de memória relacionado à meia-idade, talvez?
"Amor, a aveia."
8. Quem ainda se lembra do João Hélio, o menino de seis
anos barbaramente assassinado por bandidos que o arrastaram pela rua, preso ao
cinto de segurança do carro roubado? Isso foi em 2007, e já parece um evento
distante, esfumado pelo tempo. Além das histórias horripilantes que esquecemos,
há os incontáveis casos de que nem ficamos sabendo. Se Cláudia Silva Ferreira
não tivesse sido filmada em sua agonia, provavelmente nunca conheceríamos essa
terrível imagem da banalização do mal.
"As uvas passas, por favor."
"As uvas passas, por favor."
9. Notícias de Rubens Paiva, engenheiro e político "desaparecido"
pela ditadura militar em 1971: investigações revelam que além das torturas e
barbaridades a que Rubens foi submetido antes de ser assassinado, um militar foi
visto pulando sobre seu corpo.
10. A ditadura militar, eis outro tenebroso exemplo de
banalização do mal.
E tem gente que diz que sente saudades.
Há algumas semanas Marcelo Rubens Paiva - escritor, filho de Rubens - escreveu no "Estado de S.Paulo" uma crônica brilhante em que lista dezenas de contra -argumentos que devem ser proferidos ao próximo idiota' que te disser que tem saudades da ditadura.
E tem gente que diz que sente saudades.
Há algumas semanas Marcelo Rubens Paiva - escritor, filho de Rubens - escreveu no "Estado de S.Paulo" uma crônica brilhante em que lista dezenas de contra -argumentos que devem ser proferidos ao próximo idiota' que te disser que tem saudades da ditadura.
11. Notícias de Paulo Malhães, coronel reformado do
Exército, admitindo à Comissão Nacional da Verdade que torturou matou e ocultou
cadáveres durante a ditadura: "Como faço com tudo na vida, eu dei o
melhor de mim naquela função".
12. No Brasil até a banalização do mal parece xumbrega,
mais tosca do que o conceito proposto por Hannah Arendt. Nosso mal é primitivo,
aleatório. Aqui não é preciso nenhuma ideologia ou hierarquia para o mal se espalhar
como uma praga corriqueira, uma prosaica dengue comportamental numa floresta de
arbustos retorcidos. Vivemos a banalização do mal.
Comentários